quinta-feira, julho 06, 2006

Emancipadas e consumidoras

FOnte: Istoé Dinheiro

Livro desvenda a evolução do papel da mulher por meio dos comerciais e das embalagens do sabão Omo Por Laila Mahmoud


De que maneira a imagem feminina evoluiu na propaganda ao longo dos últimos 50 anos? Foi respondendo a essa pergunta que a pesquisadora Marie Suzuki Fujisawa percorreu, por três anos, a trajetória da mulher nos comerciais de sabão em pó e a das donas de casa que se transformaram em mulheres emancipadas de 1957 a 2003. O resultado é o livro Das Amélias às mulheres multifuncionais – A emancipação feminina e os comerciais de televisão (Summus Editorial), fruto de sua dissertação de mestrado pela Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP). Em entrevista à DINHEIRO Online a autora desvenda onde mais o poder das consumidoras gerou mudanças na maneira que os comerciais passaram a tratá-las.

Ariel: Um olhar mais bem-humorado na representação feminina da concorrência
Como foi feita a pesquisa, quanto tempo levou?Ela é uma dissertação de mestrado e, do começo até a defesa, levei um período de três anos. O livro ficou pronto em um ano e meio. É uma pesquisa que começou desde a graduação, quando analisei as cores como moda ou imposição do mercado. Desde essa época eu pesquiso cores, como elas influenciam o consumo, principalmente da mulher, porque ela é decisora de poder de compra.
Isso sempre foi assim?A consumidora, na média, é detentora de 72% do poder de decisão de compra. É ela quem decide. Mas existem alguns segmentos em que esse poder é maior, por exemplo, na decisão de compra de casa, carros, bens de consumo não-duráveis. Nos não-duráveis elas chegam a ser 90%.
Dessa vez, para analisar o comportamento do consumidor, você escolheu especificamente as marcas de sabão em pó. Por que elas?Porque você tem a comunicação desde 1957 de uma mesma marca que lança produtos no mercado e continua até hoje. E a análise foi até 2003.
Mas você chegou a pensar em outros produtos para a análise?Dentro do livro eu cito alguns exemplos como produtos de limpeza, de beleza e a parte de alimentos, porque existe diferença de consumo entre homens e mulheres. Na parte de cores, as mulheres gostam de cores mais chamativas, vibrantes, os homens, de cores mais escuras, neutras. E os hábitos de consumo da mulher são diferentes daqueles dos homens. Os homens gostam de refeições mais robustas, café, almoço e jantar. As mulheres gostam de beliscar, de comer picadinho. Homem dificilmente tem uma bolacha, uma bala no escritório. Já o hábito de consumo de comida da mulher é de gostar de beliscar, de comer durante ou entre as refeições. Então, quando você conhece os hábitos do consumidor, você direciona até as cores do produto que você vai lançar. Você foca teu estudo de cores das embalagens pro teu público, para vender mais.
Você escolheu a marca basicamente pela continuidade histórica?Foi. Porque eu tenho como comparar um produto, a forma como a mulher é representada nos comerciais num período grande de tempo.
Mas esses outros produtos não têm diferença na representação feminina para a do sabão em pó?O livro está dividido em várias etapas. A primeira parte é sobre a emancipação feminina no mundo ocidental e no Brasil. Depois eu falo sobre os cinco sentidos do homem que são explorados pelos publicitários para vender mais produtos – e é por isso que cabe essa análise de cores e, por exemplo, da indústria de perfumaria, onde 20% apenas vem do perfume, 80% são de cheiros artificiais. Então cheiro de carro novo, de bolo: nos Estados Unidos eles colocam na casa, antes de vender, para a pessoa poder entrar, se sentir confortável, ter referência de infância e de aconchego, e de repente comprar a casa pelo lado emocional, e não pelo lado racional.

Mãe zelosa: A sigla significa Old Mother Own que, em inglês, quer dizer “velha mãe coruja”. A marca carrega esse significado até hoje.


Isso tudo é comercializado?A segunda parte do livro eu falo justamente sobre isso: sobre as formas que você é persuadido ao consumo e não sabe. Isso aí é a mensagem que não é explícita, e que a indústria investe demais para vender produto. Cheiro de carro novo é o típico exemplo que todo mundo conhece. E depois eu falo sobre o histórico da marca Omo no Brasil, que significa Old Mother Own, que é “velha mãe coruja” e que carrega esse significado de mãe zelosa até hoje. E a etapa onde eu mostro os comerciais, como ela é representada. Então, nos primeiros comerciais a mulher aparece no ambiente doméstico, lavando roupa, e o homem trabalhando fora. Depois você já vê uma evolução, em 2003, onde ela é representada no ambiente de trabalho, sai para almoçar, amamenta a filha e volta para o trabalho (um dos comerciais do sabão em pó Omo analisados pela estudiosa), aí você vê a do Ariel, onde eles brincam com os maridos ideais (no comercial, citado no livro de Marie, os maridos são tratados como os agentes na lavagem da roupa), então, ao invés de você ter ativos e falar sobre a força química do teu produto, eles brincam com o humor: seu sabão contém “maridos ideais” que vão lavar a roupa para você.
Você falou do princípio desses comerciais e pulou para 2003. Na epígrafe do livro você cita a Betty Friedan (americana, líder do movimento feminista dos anos 60), que diz que de 1956 para 1976 as mulheres passaram a ser representadas de jeitos muito diferentes. Você acha que o salto que houve nesse período comparado ao de 1976 para 2006, foi muito maior, equivalente ou menor?Foi menor. O que acontece é que os comerciais dificilmente vão lançar tendências. Porque uma marca não vai querer arriscar sua imagem com tanta inovação. Os comerciais acompanham a demanda da mulher de se ver retratada como ela é. Então, você nunca vê um comercial que ajuda na emancipação feminina. Você vai ver um comercial que vai atender a necessidade da mulher de ser ver representada como uma mulher que começou a sair de casa. Nesse período de 70, você vê os comerciais em que ela ainda está em casa, ou está no supermercado: ela passa do ambiente doméstico para o externo, mas continua nesse ambiente de supermercado. Você vê o teste da janela (alusão a um comercial de Omo em que a dona-de-casa ficava em uma janela). E, na representação da mulher, o que é uma janela? É você se mostrar para o mundo. E sempre é o homem quem endossa.
Você comenta no livro que o ator Paulo Goulart era narrador de comerciais históricos do Omo. Por que essa necessidade do papel do homem na propagação da identidade da marca?O homem entra para endossar a química do produto, o seu poder de limpeza. A mulher é retratada para ter identificação entre a consumidora e a mulher que está sendo representada nesses comerciais. E o homem entra para dar credibilidade do produto.
E você acredita que ele entra para a credibilidade dos argumentos racionais?Ele entra justamente para isso. É como se o químico fosse mais crível que a dona de casa para dizer que lava melhor.
Segundo a Fundação Perseu Abramo, 87% das mulheres concordam com a divisão de trabalho mais igualitária. Você cita, contudo, a marca Ariel como responsável por trazer um olhar mais bem humorado para os comerciais, ainda que com alguns exageros. Você acredita que, se não houvesse essa concorrência, haveria uma alternativa ao modelo mãe coruja de representar a mulher ou é a concorrência quem o traz?Eu acho que casou com o momento, onde a mulher também exige um retrato mais real da vida. E com certeza a vinda desse comercial que usa o humor, que brinca com os maridos ideais, ajudou a trabalhar e mudar o caminho da comunicação. Você percebe que o dos maridos ideais são mulheres mais jovens que se identificam com esse produto. Elas têm menos culpa de delegar o trabalho doméstico para um produto de limpeza. E você tem vários perfis também. Você tem a mãe que gosta de ser zelosa e a mãe que gosta de curtir os filhos. E você vê a nítida comunicação entre o Omo, que é mais para mãe zelosa. E há várias variantes da marca, até para pegar públicos diferentes (veja quadro).
Mas você diz que há também homens que têm de lavar suas roupas, e há mulheres que lavam suas roupas em lavanderia. Elas se encaixariam no concorrente ou também se sentem atraídas por essa relação da dona de casa?Omo tem variantes como Progress e Multiação. Progress foca para a mulher moderna, que sai de casa, delega mais para a máquina – tanto é que a última parte do livro falou mais sobre merchandising. Você vê a associação da marca com a máquina de lavar, e Ariel que pega esse mesmo público, que delega mais essa parte de lavanderia. Você tem o Multiação onde a mulher é feliz pela família, pelo resultado do que a família traz, pela alegria da família. Você vê marcas que focam o mesmo público e uma marca com variantes diferentes para públicos diferentes. Com a mesma marca eu consigo atingir dois tipos de consumidor.
E existiu algum meio termo antes do surgimento dessas variantes, você chegou a conferir uma tentativa de apelo para outros públicos?Eu faço análise semiótica da caixa. Houve mudanças do logotipo, no canto inferior direito, mas eu não tenho toda essa evolução. Eu tenho do macro, a caixa que mudou de posição, por questões logísticas.
Você falou que as marcas não lançam tendências, mas refletem. Há algum produto que, na tentativa de seduzir, de vender um modo de vida mais à frente de seu tempo, se valha de algum estereótipo que talvez nem corresponda à realidade?Eu vou dar um exemplo do mercado: a Benetton. Ela se arriscou muito e esteve na mídia por divulgar imagens que, em princípio, chocavam. E era essa mesma a intenção. Mas você vê que, com o tempo, isso também cansa, porque você já espera isso da marca. E quando ela faz alguma coisa tradicional, já passa despercebido. Então é por isso que você tem de estar muito junto da hora certa de lançar uma campanha diferenciada.
Você lembra de algum exemplo que venda uma mulher que ainda não exista?Não é que ainda não existe, mas vou dar dois exemplos: o Dove, e a Natura. São empresas que passaram a representar a mulher como ela é mesmo. Isso foi uma grande inovação, principalmente da Natura, com a linha anti-idade, onde ela representa a mulher como é. A mulher madura gosta de se ver sem o estereótipo da mulher jovem. Então ela tem prazer de se ver mais velha nos comerciais, mas é uma mulher mais velha madura. Vejo isso como uma tendência que foi feliz demais. Eles podiam arriscar e a mulher não gostar de se ver representada como ela é mesmo, mas a escolha foi muito feliz. Nos comerciais de Dove, as modelos são mulheres como nós, umas mais cheias, outras muito magras, baixas, altas, jovens e mais velhas. A semelhança entre elas é a alegria, confiança e orgulho de mostrarem seus corpos como eles são. O que é explorado é a atitude e não a beleza. A consumidora identifica-se com estas modelos, pois são mais próximas de seu perfil. É gostoso se ver em um espelho e se achar bonita, você não acha?
E nesse sentido de procurar uma voz feminina para endossar a qualidade do produto de uma maneira racional, tem algum contra-exemplo?A Malu Mader (na década de 90). Algumas marcas procuram identificações de arquétipos para fazer analogia entre a marca e o arquétipo. Sempre Livre era uma marca para o público mais velho e eles quiseram rejuvenescer sua imagem. Então quem é que, naquela época, tinha o perfil da “mulher imperatriz” – jovem, moderna? Na época, foi a Malu Mader. (o arquétipo da imperatriz faz parte de um estudo da autora sobre os arcanos do tarô, de C.G. Jung, e representa a mulher bonita, com conhecimento, independente, que reina e é admirada como mulher).
Em certa passagem do livro você comenta que as mulheres que foram analisadas são basicamente de classe média...Por conta da marca. Você tem várias marcas de detergente em pó ou de produtos de beleza para diferentes classes sociais. Então a mesma empresa lança no mercado diferentes marcas. A Avon também: n0o catálogo você vê que o mesmo pó facial vai atingir classes baixas e classe A. E um dos exemplos é linha Renew. Eles mudaram o segmento, porque antes a Avon era uma marca relacionada à venda porta a porta, marca barata. E com esse produto com tecnologia maior e mais cara, eles vão posicionar a marca.
Mas os mecanismos que são utilizados se diferenciam entre as classes?O consumidor de classes sociais mais altas prefere cores mais discretas, sóbrias: azul, verde. Classes sociais mais baixas preferem cores mais vibrantes, porque quando você as coloca dentro do carrinho do supermercado, elas dão uma sensação de volume maior, de que comprou mais coisas. E o consumidor de classe mais alta não tem essa necessidade. Ele busca um produto que vai trazer prazer ou status. E você tem exemplos de marcas que suprem a necessidade e marcas que vão te dar prazer, com as quais você vai se presentear.
Você comenta no livro que “a mulher margarina” é menos verossímil que a “mulher erótica” e que as consumidoras percebem essa falta de respaldo na realidade dos comerciais, de quem só pensa em deixar a casa limpa. Você acredita que há a tendência de a mulher ser retratada de forma mais fidedigna na sua condição daqui para frente? Em quais produtos?A “mulher-margarina” também tem uma evolução. No começo ela oferecia o café da manhã, preparava tudo. Na segunda etapa, o homem é que prepara o café para a mulher e, na terceira, a criança passa a aprender a preparar o café e faz uma surpresa para os pais. Você vê uma evolução de quem vai servir quem. Eu vejo, como tendência, a mulher ser representada mais no ambiente onde tem prazer de estar: no escritório, na praça, com os filhos – mas não dentro do lar. Um exemplo: eu trabalho o dia inteiro, gostaria de estar até mais tempo com minha filha, mas não necessariamente na cozinha com ela. Eu posso ver o comercial onde tem uma mãe que está curtindo muito seus filhos, mas no parque, que é o meu desejo. Ou numa praia. Então, o público que decide a compra é a mulher, e a forma como ela vai ser representada vai depender muito do público que você quer atingir. Mas com certeza fora do ambiente doméstico, que ela esteve tão relegada até então.
São elas que mandam
Segundo pesquisas citadas pela autora, as mulheres são responsáveis pela decisão de compra de 94% do mobiliário doméstico, 42% dos carros novos, 58% dos remédios, 92% dos pacotes turísticos e 88% dos planos de saúde. “Porque a gente fala que até os produtos que o homem consome o público-alvo são as mulheres? Roupa íntima quem compra? É a mãe, a namorada, a esposa. No último Fórum Mundial de Marketing (HSM) um palestrante trouxe imagens muito interessantes da mulher que vai comprar na seção de cuecas. É sempre ela que compra. E quando é o homem que vai comprar, ele tem que checar o número, se é M, P, G, dentro da própria calça. É feita uma filmagem, que mostra esse comportamento do consumidor”.
Não é só o apelo das embalagens de roupa íntima que focam as mulheres. Segundo Marie, a indústria automobilística abusa de recursos como quebra-sol com espelho, lateral onde cabem mamadeiras e garrafas de água de até um litro e meio. Todas essas são sugestões das mulheres e foram acatadas. Porque, na maioria dos casos, são elas que decidem. Até no que se achava que eram eles.